O desastre do edifício Andrea e a capacidade de resiliência.
Olho para essa foto do estudante Davi Sampaio, morador do 1º andar do edifício Andrea, e algo me parece contrastante. O sorriso no rosto, o gesto que comunica estar “tudo legal”; e no contraponto, o “poeril” que cobre sua pele e os escombros que apara seu corpo e beira sua cabeça.
Dois questionamentos existenciais instantaneamente pairam na minha mente: Por que uns morrem e outros sobrevivem? Não pergunto pelo viés físico ou técnico que explicaria a pergunta. Pergunto sobre o viés transcendental.
A outra reflexão que surge é: Daqueles que permanecem vivos (as próprias vítimas, familiares, vizinhança), por que alguns vivenciam a experiência como dilacerante, a ponto de deixar fortes traumas, enquanto outros, diante e após o caos, superam, extraem aprendizados e até crescem emocionalmente?
É sobre esse segundo questionamento que escrevo esse texto.
Haveria uma força “pré-instalada” nestas pessoas que justificaria a capacidade para suportar e reestabelecer a continuidade da vida após uma experiência que lhe põe de frente e muito perto da morte?
Sim. Esta força pode ser um dos fatores que explica a capacidade de reorganização pós-trauma. É essa mesma força que te ajuda a se recuperar após uma demissão, o fim de um relacionamento ou outro tipo de crise de outra natureza.
Mas antes de apresentá-la, vamos entender uma condição que pode ser consequência da experiência vivida pelas pessoas que sobreviveram ao desastre do edifício Andrea.
Transtorno do Estresse pós-traumático ou TEPT é uma condição ou um distúrbio de ansiedade que se caracteriza por um conjunto de sintomas físicos, emocionais e psíquicos vivido por uma pessoa que foi vítima ou testemunha de atos violentos ou traumáticos (morte ou grave ferimento), cuja experiência representou ameaça à sua vida ou à de terceiros, envolvendo medo intenso, impotência e horror.
Entende a gravidade dos efeitos de uma experiência traumática vivida em uma catástrofe?
E o que vem a favorecer a superação interior dos “destroços” deixados por uma experiência aguda como esta?
Além, claro, de todos os aspectos sociais, políticos, éticos, que poderiam contribuir com a recuperação, me deterei a um aspecto cognitivo/emocional e intrapessoal: a resiliência.
Entendida como a capacidade de resistir frente às adversidades, garantindo a sua integridade e com altas chances de reconstruir a sua vida, a resiliência é comparável a um escudo vital que nos protege contra o impacto do risco.
Como podemos observar na imagem abaixo, após o evento traumático, há 5 possíveis consequências frente ao funcionamento global do indivíduo. No ponto D e E, podemos acompanhar uma queda no funcionamento logo após o incidente e após certo tempo depois do ocorrido, como se a pessoa entrasse em uma certa anestesia logo após a experiência e só depois processasse e reagisse às consequências experimentadas pela catástrofe.
Nos pontos A, B e C, tidos como os mais resilientes, observamos em A nenhuma mudança significativa após o evento. Em B observamos uma queda no funcionamento como reação ao evento e em seguida uma quase reconstituição total do seu funcionamento, deixando alguns traumas ou marcar. E no ponto C, a pessoa vivencia uma experiência que chamamos de crescimento pós-traumático. Aqui caracterizaria a experiência daquelas pessoas que repensam suas vidas, passando a viver uma vida com mais significado e clareza de propósito.
E o que faria uma pessoa ser resiliente enquanto outra viria a sucumbir ao caos da lama?
Perda de um filho, amputação de um membro, diagnóstico de uma doença crônica, desabamento do seu prédio com moradores presentes. Pessoas diferentes passam por situações semelhantes e podem ter reações completamente díspares.
Por que uns “resistem” e outros “vão à lama”?
Há diferenças fisiológicas e psicológicas que caracterizam a vulnerabilidade das pessoas, fazendo com que algumas sejam mais suscetíveis que outras ao “caos interno”. Mas há também fatores de resiliência que contribuirão para a superação. Abaixo te descrevo alguns.
Otimismo — Suporte social — Autoconceito positivo — Controle de impulsos — Regulação emocional — Autoeficácia — Empatia — Humor — Iniciativa — Criatividade — Tolerância às mudanças — independência — Autoestima
Portanto, aquele que apresenta em seu repertório pessoal estas habilidades, apresenta maiores chances de superação e até de crescimento após uma crise. Alguns autores a comparam a um potencial genético que lhe permite ser mais resistente que outros ou um escuto que favorece o desenvolvimento humano.
Uns mencionam um fenômeno intitulado como crescimento pós-traumático.
Dessa forma, me parece mais compreensível a imagem da selfie sorridente do menino Davi debaixo dos escombros.
Acompanhando entrevistas, vídeos e notícias sobre o ocorrido, só posso crer que esse garoto tem sim um potencial de resiliência gritante e surpreendente.
Davi troca mensagens com um grupo de colegas da faculdade ao pedir a opinião deles sobre sua análise das fotos do serviço feito no dia anterior nos pilares do seu prédio. O que seria isso que não uma rede de apoio ou suporte social para compartilhamento de temas preocupantes?
Pensar nos pais e enviar uma foto para acalma-los e dizer que está bem. Isso também demonstra suporte social. Em resposta a selfie, escutar o depoimento da mãe falando em entrevista “ver o sorriso dele foi a minha maior maravilha”, isso também denota uma boa rede de apoio.
Passar cerca de 4 horas debaixo dos escombros, respirando pó, tendo uma pequena fresta pela qual permitia a entrada do ar e ainda assim ter “forças” e “cabeça” para filmar e narrar a situação e aguardar quase imóvel a ajuda dos bombeiros. Alguém duvida que é necessário muito controle de impulso e regulação emocional?
Apesar de, na literatura, não ser considerado como fator de resiliência, há 2 elementos também favoráveis para esta superação, que se encontram no rol das habilidades sociais e forças de caráter, sendo eles: a capacidade para pedir ajuda e a gratidão.
Gratidão por estar vivo, gratidão aos bombeiros, gratidão aos voluntários e a toda a equipe envolvida no resgate, foram partes dos trechos das entrevistas de Davi. Ele insere ainda um teor espiritual/transcendental quando fala “Agradecer por a vida ter me mantido nessa existência ainda”.
A partilha com o grupo do WhatsApp no dia anterior e a ligação feita para o CIOPS quando já estava sob os escombros denotam a sua capacidade e habilidade para pedir auxílio.
E para finalizar, o desastre do edifício Andréa trouxe inúmeros aspectos negativos à tona: descuido/irresponsabilidade, perdas inúmeras, desde a maior perda que foi a dos entes queridos, até a das histórias simbolizadas nos pertences destroçados daqueles que ficaram.
Mas é verdade que também trouxe à tona uma f(F)ortaleza linda de se ver. A mais visível para mim foi a solidariedade, empatia e união de um grupo de fortalezenses auxiliando nas mais variadas formas. Em seguida e não menos importante, o profissionalismo, dedicação e amor pelo que fazem dos bombeiros que ali estiveram incansáveis dias rumo ao resgate das vítimas. E ela, a resiliência, que ficou mais perceptível com a foto viralizada de Davi Sampaio.
Por Marina Simeão.
Em 03/11/2019.